Síndrome de MELAS — Tratamento Atual e Perspectivas Futuras
- Berenice Cunha Wilke
- 22 de set. de 2024
- 10 min de leitura
Atualizado: há 5 dias
Recentemente comecei a acompanhar um paciente com Síndrome de Melas (encefalomiopatia mitocondrial, acidose láctica e episódios semelhantes a AVC - CID10 G71.3). Por ser uma doença mitocondrial rara, o diagnóstico foi muito difícil de ser feito, foram várias internações hospitalares ao longo de anos e muito sofrimento para toda a família. O diagnóstico foi realizado pela história clínica da criança que apresentava convulsões associado a um quadro semelhante ao AVC com a presença de lactato elevado em vários exames, inclusive no liquor. O diagnóstico foi e confirmado pelo painel genético de doenças mitocondriais.
Um segundo paciente com a Síndrome de Melas iniciou seu quadro apenas aos 8 anos de idade com as convulsões e lesões semelhantes ao AVC na RMN. Até então, ela leva uma normal, sem os sintomas da doença.
Embora não haja um tratamento que impeça a progressão da doença, existem várias propostas, publicadas em revistas científicas, para retardar a evolução da Síndrome de Melas, baseadas na potencialização da função mitocondrial.
A síndrome MELAS é a mais comum das doenças genéticas mitocondriais. Sua incidência é estimada de 1 nascimento em cada 4.000.
As mitocôndrias são a força motriz das células. Qualquer distúrbio mitocondrial afeta a produção de energia dos órgãos mais metabolicamente ativos do corpo, especialmente o cérebro e os músculos.
Cada célula do corpo possui cópias múltiplas e variáveis do mesmo DNA mitocondrial. Como qualquer doença mitocondrial, MELAS exibe heteroplasmia ou seja, uma variação nos tipos de DNA mitocondrial encontrados em diferentes tecidos da mesma pessoa. É comum que mutações genéticas afetem apenas algumas mitocôndrias, o que leva a um aparecimento variável de mitocôndrias doentes em diferentes tecidos da mesma pessoa.
Esse fenômeno explica a grande variabilidade na apresentação de diferentes tecidos em um indivíduo e também entre diferentes pacientes com o mesmo diagnóstico.
Isso também tem implicações para o diagnóstico, pois ocasionalmente os estudos de soro e urina podem ser negativos se essas linhas celulares não forem afetadas, tornando necessária a realização de biópsia muscular para examinar o tecido afetado.
SINTOMAS
Os sintomas da síndrome MELAS geralmente começam entre as idades de 2 a 15 anos, mas casos de início tardio, após os 20 anos de idade também foram relatados. Em aproximadamente 75% dos casos, o início do distúrbio ocorre antes dos 20 anos de idade. Afeta igualmente homens e mulheres.
Normalmente, os pacientes apresentam um início agudo de sintomas neurológicos semelhantes ao AVC com hemiparesia, hemianopia ou cegueira cortical. Os episódios iniciais também podem envolver vômitos e dores de cabeça que podem durar vários dias. Esses episódios são considerados "semelhantes a AVC" porque não há oclusão vascular e o envolvimento não corresponde a nenhum território vascular específico. O coeficiente de difusão aparente na ressonância magnética em indivíduos com MELAS pode ser aumentado ou revelar um padrão misto.
Crianças com MELAS frequentemente apresentam desenvolvimento psicomotor normal inicial até o início dos sintomas entre 2 e 10 anos de idade. Embora menos comum, o início infantil pode ocorrer e pode se apresentar como deficiência de crescimento, retardo de crescimento e surdez progressiva. O início em crianças mais velhas geralmente se apresenta como ataques recorrentes de cefaleia semelhante à enxaqueca, anorexia, vômitos e convulsões. Crianças com MELAS também costumam ter baixa estatura.
Os sintomas menos comuns incluem espasmos musculares involuntários (mioclonia), coordenação muscular prejudicada (ataxia), cardiomiopatia, diabetes mellitus, depressão, transtorno bipolar, problemas gastrointestinais e problemas renais.
O grau de heteroplasmia (proporção de mitocôndrias mutadas) determina a gravidade dos sintomas.

MECANISMO GENÉTICO DE TRANSMISSÃO
As mitocôndrias paternas estão presentes apenas na cauda dos espermatozoides. Como resultado, eles são perdidos durante a fertilização e distúrbios mitocondriais, incluindo MELAS, são transmitidos geneticamente apenas pela mãe. Em casos raros, MELAS pode resultar de uma mutação esporádica sem história familiar.
Além da história clínica, do ácido láctico aumentado no sangue e liquor, o diagnóstico pode ser confirmado pelo painel genético das doenças mitocondriais.
TRATAMENTO ATUAL
Embora ainda não exista um tratamento capaz de impedir a progressão da Síndrome de MELAS, diversas estratégias vêm sendo estudadas com o objetivo de potencializar a função mitocondrial, reduzir o estresse oxidativo e diminuir a frequência e gravidade das crises.
Suplementação e cofatores mitocondriais
Múltiplas vitaminas, cofatores e substratos energéticos são frequentemente utilizados em pacientes com doenças mitocondriais. Apesar de ainda não existirem protocolos padronizados ou evidências definitivas de eficácia, essas terapias são amplamente adotadas pelo seu potencial de suporte metabólico.
Os suplementos mais utilizados incluem:
Coenzima Q10 de alta biodisponibilidade e Riboflavina – aumentam o fluxo da cadeia respiratória mitocondrial e auxiliam na síntese de ATP.
Idebenona (análogo sintético da CoQ10), Ácido α-lipóico, Vitaminas C e E – atuam como antioxidantes e cofatores redox, reduzindo o estresse oxidativo associado à disfunção mitocondrial.
Idebenona e Coenzima Q10
A Coenzima Q10 (ubiquinona) é um cofator essencial para a transferência de elétrons entre os complexos I, II e III da cadeia transportadora de elétrons (ETC), além de atuar na estabilização das membranas mitocondriais e na redução de espécies reativas de oxigênio (ROS).Seu uso pode melhorar a fadiga, a fraqueza muscular e reduzir os níveis séricos de lactato em indivíduos com MELAS.
No entanto, a forma convencional de CoQ10 apresenta baixa absorção intestinal e limitada penetração na barreira hematoencefálica, o que restringe seus efeitos sobre o sistema nervoso central.
Com o avanço das tecnologias de veiculação, surgiram formulações de alta biodisponibilidade, como a CavaQ10®, que utiliza sistemas micelares e transportadores lipídicos inteligentes. Essas formulações permitem absorção até 18–20 vezes superior à CoQ10 padrão e demonstram distribuição tecidual ampliada, inclusive no tecido cerebral e cardíaco.Dessa forma, a CavaQ10® representa uma alternativa natural à idebenona, associando o perfil antioxidante e bioenergético da CoQ10 à capacidade de atravessar a barreira hematoencefálica.
A idebenona, por sua vez, é um análogo sintético e de menor peso molecular da CoQ10, tradicionalmente utilizada em doenças mitocondriais e neurodegenerativas. Ela também é capaz de atravessar a barreira hematoencefálica e demonstrou benefícios neurológicos em relatos de caso e ensaios clínicos de fase inicial (ClinicalTrials.gov: NCT00887562).
Atualmente, formulações avançadas como a CavaQ10® permitem obter efeitos antioxidantes e neuroprotetores comparáveis aos da idebenona, com a vantagem de preservar a estrutura natural da CoQ10 e oferecer melhor estabilidade e segurança para uso contínuo.
Substratos mitocondriais e aminoácidos
L-carnitina – necessária para o transporte de ácidos graxos de cadeia longa para o interior da mitocôndria, onde ocorre a β-oxidação. Sua suplementação pode aumentar a oxidação lipídica e regenerar a coenzima A intracelular.
Creatina – convertida em fosfocreatina, atua como doador de fosfato de alta energia, essencial para regenerar ATP em músculos e cérebro.
L-arginina e L-citrulina – são precursoras do óxido nítrico (NO), cuja deficiência contribui para episódios semelhantes a AVC na síndrome de MELAS.
Durante as crises, a L-arginina intravenosa (0,5 g/kg/dose) deve ser administrada precocemente para restaurar a vasodilatação cerebral.Na fase de manutenção, a L-arginina oral (0,3–0,5 g/kg/dia, em três doses após as refeições) ajuda a manter níveis plasmáticos >100 µmol/L, reduzindo a frequência e intensidade das crises.A L-citrulina tem demonstrado efeitos semelhantes e pode ser usada de forma complementar.
Evidências clínicas
Um estudo japonês com seguimento de 8 anos (2018) avaliou o uso combinado de infusões intravenosas de L-arginina nas crises e L-arginina oral na manutenção.Os resultados mostraram que:
A arginina oral prolongou o intervalo entre as crises e reduziu a gravidade dos episódios;
A arginina intravenosa melhorou sintomas agudos como cefaleia, náuseas, rebaixamento de consciência e distúrbios visuai

Esses achados reforçam o papel da correção da deficiência de óxido nítrico como componente essencial no tratamento de MELAS.
Embora não exista um tratamento que impeça a progressão da doença, existem alguns tratamentos propostos para potencializar a função mitocondrial e diminuir a velocidade da progressão da doença.
Múltiplas vitaminas e cofatores são frequentemente usados em pacientes com distúrbios mitocondriais, embora essas terapias ainda não tenham sido padronizadas ou definitivamente comprovadas como eficazes.
🧩 Tabela Resumo — Estratégias e Suplementos na Síndrome de MELAS
Panorama das Terapias que Vêm Sendo Estudadas
As tendências emergentes no tratamento das doenças mitocondriais refletem o avanço da biologia molecular, engenharia genética e medicina personalizada, sinalizando uma mudança de paradigma em direção a terapias mais específicas e eficazes.Embora muitas ainda estejam em fase experimental, os progressos são promissores.
Antioxidantes direcionados às mitocôndrias
Estão sendo desenvolvidos antioxidantes que atuam seletivamente dentro da mitocôndria, com o objetivo de neutralizar espécies reativas de oxigênio (ROS) e minimizar os danos oxidativos às membranas e ao DNA mitocondrial.
Reaproveitamento de medicamentos e terapias combinadas
Estratégias de reposição terapêutica (drug repurposing) vêm sendo exploradas para reutilizar fármacos com segurança conhecida em novas indicações mitocondriais.As terapias combinadas — que agem em múltiplas vias bioquímicas — buscam sinergia entre antioxidantes, moduladores metabólicos e cofatores.
Novos agentes farmacológicos
Medicamentos como o bezafibrato, agonista do receptor PPARα, têm sido investigados por seu potencial em estimular a biogênese mitocondrial e aumentar a produção de energia.
Antioxidantes e moduladores metabólicos
Compostos como vitaminas E e C, ácido alfa-lipóico, CoQ10 e creatina continuam sendo estudados como moduladores da bioenergética celular e protetores contra o estresse oxidativo.
Suporte nutricional e dietético
Intervenções como a dieta cetogênica — que aumenta a disponibilidade de corpos cetônicos como fonte alternativa de energia — e a suplementação com creatina e aminoácidos estão sendo investigadas por seu potencial de otimizar o metabolismo energético.
Terapia de Substituição Mitocondrial (MRT)
A MRT (Mitochondrial Replacement Therapy) consiste na transferência de mitocôndrias saudáveis de um terceiro doador para o óvulo ou embrião portador de mutações no DNA mitocondrial (mtDNA).O Reino Unido foi o primeiro país a licenciar a técnica; recentemente, a Austrália aprovou a chamada Lei de Maeve, permitindo a MRT em ensaios clínicos controlados.Essa abordagem pode reduzir drasticamente o risco de transmissão de doenças mitocondriais, além de expandir o conhecimento sobre a função e a interação genômica das mitocôndrias humanas.
Medicina regenerativa e terapias com células-tronco
Abordagens de engenharia de tecidos e terapia celular buscam substituir ou reparar células mitocondrialmente disfuncionais.Células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs) podem gerar modelos celulares de MELAS e, futuramente, permitir reposição de células saudáveis, restaurando o metabolismo energético.
Edição genética e terapias baseadas em RNA
Ferramentas como CRISPR-Cas9, TALENs e mitoTALENs estão sendo testadas para corrigir mutações patogênicas do mtDNA.Em paralelo, terapias de mRNA e oligonucleotídeos antisense buscam modular a expressão de genes mitocondriais e compensar defeitos de tradução proteica.
Transferência mitocondrial
A chamada mitotransferência — ou transplante mitocondrial — consiste em transferir mitocôndrias funcionais de células doadoras para tecidos danificados.Embora ainda experimental, essa técnica tem mostrado resultados promissores em modelos de AVC, isquemia cardíaca e lesão tecidual, podendo futuramente ser aplicada em distúrbios metabólicos e neuromusculares.ara opções terapêuticas mais eficazes e personalizadas no futuro.
Considerações Finais
O tratamento da Síndrome de MELAS evolui de uma abordagem exclusivamente paliativa para um modelo integrado, que combina terapias metabólicas, antioxidantes e estratégias moleculares avançadas.A convergência entre genética, biotecnologia e medicina personalizada abre novas perspectivas para intervenções causais — e não apenas sintomáticas — nas doenças mitocondriais.

RHK, 13 anos, portadora da síndrome de Melas
Foto gentilmente cedida pelos pais.
Gene: MT-TL1
Posição: chrM:3243
Variação: A > G
Conseqüência: alteração no tRNA de leucina 1
Cópias: heteroplasmia (≈ 62,5%)

PBA
DN 21/09/2005
portador da síndrome de Melas
Foto gentilmente cedida pelos pais.
Gene: MT-TL1
Posição: chrM:3243
Variação: A > G
Conseqüência: alteração no tRNA de leucina 1
Cópias: heteroplasmia (≈ 40%)
Sou Dra. Berenice Cunha Wilke, médica formada pela UNIFESP em 1981, com residência em Pediatria na UNICAMP. Obtive mestrado e doutorado em Nutrição Humana na Université de Nancy I, França, e sou especialista em Nutrologia pela Associação Médica Brasileira. Também tenho expertise em Medicina Tradicional Chinesa e uma Certificação Internacional em Endocannabinoid Medicine. Lecionei em universidades brasileiras e portuguesas, e atualmente atendo em meu consultório, oferecendo minha vasta experiência em medicina, nutrição e medicina tradicional chinesa aos pacientes.
Para acompanhar as pesquisas que vem sendo realiadas no mundo sobre a sindrome de Melas, inclusive as pesquisas que estão convocando pacientes acesse:
A Khondrion é uma empresa biofarmacêutica em estágio clínico que descobre e desenvolve terapias visando a doença mitocondrial primária, tendo o medicamento sonlicromanol já sendo investigado em pacientes adultos com Doença Mitocondrial Primária, como é o caso da Síndrome de Melas.
Associações e Fundações voltadas ao estudo das doenças mitocondriais - algumas dessas associações também estão desenvolvendo pesquisas sobre o tratamento da Síndrome de Melas e podem estar convocando pacientes para a pesquisa:
Pia S, Lui F.2020 Jul 6. In: StatPearls
Para saber mais:
J Inborn Errors Metab Screen . 2017 Jan;5:10.1177/2326409817697399.
ClinicalTrials.gov ID NCT00887562
Koga Y, Povalko N, Inoue E, et all
Clinica. J Neurol. dezembro de 2018; 265 (12):2861-2874.
Pia S, Lui F.2024 Jan 25. In:
StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2024 Jan
Barcelos I, Shadiack E, Ganetzky RD, Falk M
J.Curr Opin Pediatr. 2020 Dec;32(6):707-718.
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