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Autismo e Microbiota Intestinal: O Papel do Intestino no Comportamento, na Imunidade e na Qualidade de Vida

  • Foto do escritor: Berenice Cunha Wilke
    Berenice Cunha Wilke
  • há 2 dias
  • 6 min de leitura

O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é uma condição de neurodesenvolvimento caracterizada por dificuldades persistentes de comunicação e interação social, padrões restritos e repetitivos de comportamento e um processamento sensorial frequentemente atípico. Nos últimos anos, a ciência tem avançado de forma significativa na compreensão não apenas dos sintomas centrais do TEA, mas também do conjunto de condições associadas que afetam grande parte dessa população — especialmente as alterações gastrointestinais.


Até quatro vezes mais comuns do que na população neurotípica, sintomas como constipação, diarreia, dor abdominal, refluxo, distensão e seletividade alimentar revelam que, para muitos indivíduos autistas, o intestino desempenha um papel-chave no bem-estar geral. Essa relação tem ampliado o interesse da comunidade científica e clínica no chamado eixo intestino-cérebro, um sistema de comunicação bidirecional que conecta microbiota, sistema imune, intestino e cérebro.


A seguir, reunimos de forma integrada e atualizada as principais evidências sobre o papel da microbiota intestinal no TEA e as potenciais intervenções que surgem como complementares ao cuidado tradicional.


Por que olhar para o intestino no autismo?

A elevada prevalência de comorbidades gastrointestinais e imunológicas entre indivíduos com TEA levou à hipótese de que fatores além do cérebro podem influenciar o comportamento, a cognição e a regulação emocional.


Em crianças e adultos autistas, estudos mostram que episódios de dor abdominal, constipação ou diarreia frequentemente se correlacionam com:

  • irritabilidade e agressividade;

  • ansiedade e crises de nervosismo;

  • distúrbios do sono;

  • regressão ou piora de comportamentos sociais;

  • maior estereotipia;

  • maior seletividade e aversão alimentar.


Essa conexão reforça que, para um grupo significativo de indivíduos com TEA, tratar o intestino é também tratar o comportamento, pois ambos estão profundamente interligados.


O eixo intestino-cérebro: uma via de mão dupla

O intestino é, hoje, considerado um “segundo cérebro”. Ele possui um sistema nervoso próprio, o SNE (sistema nervoso entérico), abriga grande parte do sistema imunológico e é o local onde vivem trilhões de microrganismos — coletivamente chamados de microbiota intestinal.


O eixo intestino-cérebro funciona principalmente por quatro vias:

  1. Neuronal – através do nervo vago, que liga o intestino diretamente ao cérebro;

  2. Imunológica – pela produção de citocinas e moléculas inflamatórias;

  3. Endócrina – pela liberação de hormônios e neurotransmissores;

  4. Metabólica – pelos metabólitos produzidos por bactérias, como ácidos graxos de cadeia curta (AGCC).

Quando a microbiota está desequilibrada (disbiose), todas essas vias podem ser afetadas, contribuindo para alterações comportamentais, sensoriais e cognitivas.


O que já sabemos sobre a microbiota no TEA?

Estudos genéticos e ambientais explicam parte dos mecanismos do autismo, mas as pesquisas recentes mostram que indivíduos com TEA possuem um perfil microbiológico diferente do de pessoas neurotípicas.


Algumas das alterações mais frequentes são:

🔻 Redução de bactérias benéficas:

  • Bifidobacterium – produtora de GABA; reduzida em muitos indivíduos com TEA.

  • Akkermansia muciniphila – mantém a barreira intestinal íntegra; níveis baixos estão associados à permeabilidade intestinal e inflamação.

  • Lactobacillus reuteri – importante modulador do comportamento social pela regulação da oxitocina.

🔺 Aumento de bactérias potencialmente nocivas:

  • Clostridium spp. – podem produzir toxinas e degradar GABA.

  • Desulfovibrio spp. – produtor de sulfeto de hidrogênio, associado à inflamação intestinal.


Outras características encontradas em estudos:

  • Menor diversidade microbiana (“microbiota pobre”).

  • Maior presença de metabólitos inflamatórios, como lipopolissacarídeos (LPS).

  • Perfil pró-inflamatório no intestino e, em alguns casos, no cérebro.


Essas alterações têm sido observadas tanto em amostras fecais quanto em biópsias da mucosa intestinal, aumentando a robustez dos achados.


Permeabilidade intestinal e neuroinflamação

A barreira intestinal é responsável por impedir que toxinas e moléculas inflamatórias passem para a corrente sanguínea. Quando ela se torna mais permeável — processo conhecido como “intestino permeável” — substâncias antes bloqueadas podem circular livremente.


Em paralelo, a barreira hematoencefálica (que protege o cérebro) também pode ser afetada. O resultado é um ambiente de inflamação sistêmica e, potencialmente, neuroinflamação, que pode influenciar comportamento, sono, humor e cognição.


Esse mecanismo é especialmente relevante no TEA, onde muitos estudos apontam aumento de marcadores inflamatórios no sangue, no líquido cefalorraquidiano e em tecidos cerebrais.


Como a alimentação influencia a microbiota no TEA?

A alimentação é um dos fatores mais determinantes na composição da microbiota. Em muitos indivíduos com TEA, a seletividade alimentar leva a dietas pobres em fibras e ricas em carboidratos simples — um cenário que favorece disbiose.


A inclusão de:

  • frutas,

  • legumes,

  • verduras,

  • tubérculos,

  • leguminosas,

  • cereais integrais

modifica positivamente o ecossistema intestinal, aumentando a produção de AGCC como butirato, acetato e propionato — moléculas fundamentais para a saúde cerebral e intestinal.


Além disso, remover alimentos que causam intolerância individual (como lactose, glúten ou aditivos alimentares) pode reduzir inflamação em um subgrupo de pacientes.


Probióticos, prebióticos, pósbióticos e psicobióticos


São microrganismos vivos que trazem benefícios à saúde. Em TEA, alguns mecanismos de ação incluem:

  • aumento da produção de GABA e serotonina;

  • redução de citocinas inflamatórias;

  • melhora da permeabilidade intestinal;

  • modulação da atividade do nervo vago.


As cepas mais estudadas incluem:

  • Lactobacillus (como L. rhamnosus e L. reuteri)

  • Bifidobacterium (especialmente B. longum e B. infantis)

  • Saccharomyces boulardii

  • Clostridium butyricum (ainda não disponível no Brasil)


Alguns probióticos são considerados psicobióticos, por modularem diretamente circuitos cerebrais relacionados ao humor, ansiedade e interação social.


São fibras não digeríveis que alimentam bactérias benéficas. Entre os principais:

  • FOS

  • GOS

  • XOS

  • Fibregum

  • Inulina

  • Amido resistente


Em crianças com TEA, estudos mostram melhora da composição microbiana e redução de sintomas gastrointestinais.


Simbióticos

Associação de probióticos + prebióticos. Mostram potencial superior ao uso isolado.



Pósbióticos

São metabólitos produzidos por bactérias, como:

  • ácidos graxos de cadeia curta,

  • peptídeos,

  • vitaminas,

  • polissacarídeos.


Representam uma abordagem futura promissora, pois atuam diretamente nas vias metabólicas envolvidas na regulação neural e imunológica.


Transplante de microbiota fecal

O transplante de microbiota fecal é ainda é considerado experimental no TEA, mas estudos iniciais mostram:

  • melhora de sintomas gastrointestinais;

  • redução de irritabilidade;

  • melhor interação social;

  • resultados duradouros em alguns pacientes após 2 anos.


A técnica consiste em restaurar a microbiota intestinal por meio da transferência de microrganismos de um doador saudável cuidadosamente selecionado.


Intervenções integradas: o que pode ser feito?

As principais estratégias estudadas incluem:

  • Alimentação diversificada e rica em fibras

  • Identificação e tratamento de intolerâncias alimentares

  • Correção da permeabilidade intestinal

  • Avaliação funcional da microbiota

  • Uso racional de probióticos, prebióticos, simbióticos e pósbióticos

  • Regulação do sono e do ritmo circadiano

  • Redução de inflamação sistêmica

  • Terapias comportamentais combinadas com suporte metabólico


Importante: nenhuma intervenção substitui o acompanhamento médico e terapêutico multidisciplinar, mas pode complementar o cuidado e melhorar a qualidade de vida.


Conclusão: um campo promissor e em expansão

Embora ainda existam lacunas importantes na compreensão completa do microbioma no TEA, as evidências acumuladas indicam que:

  • o intestino influencia o cérebro;

  • a microbiota é diferente em muitos indivíduos autistas;

  • modular o intestino pode melhorar comportamentos;

  • intervenções são seguras, acessíveis e de baixo custo.


O futuro aponta para abordagens cada vez mais personalizadas, combinando genética, imunologia, microbioma e neurociência para alcançar um cuidado mais preciso e eficaz.


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Sou Dra. Berenice Cunha Wilke, médica formada pela UNIFESP em 1981, com residência em Pediatria na UNICAMP. Obtive mestrado e doutorado em Nutrição Humana na Université de Nancy I, França, e sou especialista em Nutrologia pela Associação Médica Brasileira. Também tenho expertise em Medicina Tradicional Chinesa e uma Certificação Internacional em Endocannabinoid Medicine. Lecionei em universidades brasileiras e portuguesas, e atualmente atendo em meu consultório, oferecendo minha vasta experiência em medicina, nutrição e medicina tradicional chinesa aos pacientes.


Para saber mais:


Nutrients. 2022 Jan 20;14(3):462.


Dig Dis Sci. 2020 Mar;65(3):818-828.


Transl Psychiatry. 2023 Jul 13;13(1):257.


Cell Metab. 2021 Dec 7;33(12):2311-2313.


Roberta Grimaldi, Glenn R. Gibson, et all.

Microbiome volume 6, Article number: 133 (2018)


Taniya MA, Chung HJ, Al Mamun A, Alam S, Aziz MA, Emon NU, Islam MM, Hong SS, Podder BR, Ara Mimi A, Aktar Suchi S, Xiao J.Front Cell Infect Microbiol. 2022 Jul 22;12:915701

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