Álcool e Câncer: O Que a Ciência Já Comprovou
- Berenice Cunha Wilke
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Por Dra. Berenice Cunha Wilke
O consumo de bebidas alcoólicas é profundamente enraizado na cultura, mas nos últimos anos a ciência se tornou inequívoca: álcool causa câncer. Não é associação, não é correlação — é causalidade comprovada. A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC/OMS) classifica o álcool como carcinógeno do Grupo 1, a mesma categoria do tabaco e do amianto.
A seguir, uma síntese clara do que já está estabelecido na literatura e por que isso importa tanto na prática clínica. 1. Quais cânceres estão comprovadamente relacionados ao álcool?
A evidência é consistente para pelo menos sete tipos de câncer:
Boca
Faringe
Laringe
Esôfago
Fígado
Cólon e reto
Mama (em mulheres)
O risco aumenta conforme a dose, mas não há um “limite seguro”. Mesmo pequenas quantidades podem elevar o risco, especialmente para mama e trato aerodigestivo superior. 2. Por que o álcool causa câncer?
Os principais mecanismos conhecidos incluem:
• Acetaldeído: um carcinógeno direto
O metabolismo do etanol produz acetaldeído, substância altamente reativa que danifica o DNA.
• Estresse oxidativo e inflamação
O álcool aumenta espécies reativas de oxigênio e inflamação crônica.
• Alterações hormonais
Importante no câncer de mama: álcool eleva estrogênio circulante.
• Disbiose e permeabilidade intestinal
O consumo de álcool altera a microbiota, enfraquece a barreira intestinal (leaky gut) e aumenta a exposição sistêmica a toxinas.
• Deficiência de folato e prejuízo no reparo do DNA
Pode amplificar mutações.
O resultado final é um ambiente mais favorável ao surgimento e à progressão tumoral.
3. É “menos pior” beber vinho ou cerveja?
Não. O que aumenta o risco não é a bebida em si, mas o etanol, comum a todas.Polifenóis do vinho não neutralizam o impacto carcinogênico.
4. Há diferença entre uso esporádico e consumo regular?
Sim. Consumo regular, mesmo em pequenas doses, tem efeito acumulativo muito maior sobre risco de câncer do que um uso extremamente ocasional.
Mas, do ponto de vista de saúde pública e prevenção oncológica, a orientação permanece:quanto menos álcool, melhor — e idealmente zero.
5. Quem já teve câncer deve evitar completamente?
Sim. Sobreviventes oncológicos apresentam maior vulnerabilidade devido a:
alterações residuais da mucosa
dano acumulado por quimioterapia ou radioterapia
maior instabilidade genômica
menor reserva antioxidante
maior risco de segundo câncer primário
🔍 O que dizem as principais organizações internacionais sobre álcool e câncer
American Society of Clinical Oncology (ASCO)
A American Society of Clinical Oncology, uma das maiores e mais influentes sociedades de oncologia do mundo, reconhece oficialmente o álcool como fator causal para diversos tipos de câncer e destaca que se trata de um fator de risco modificável.
A ASCO enfatiza que:
o álcool contribui para o risco de câncer mesmo em níveis considerados moderados
a redução do consumo deve fazer parte das estratégias de prevenção e do aconselhamento clínico
Declaração oficial: Alcohol and Cancer: A Statement of the American Society of Clinical Oncology)
🌍 World Cancer Research Fund International (WCRF)
O World Cancer Research Fund International é uma das principais referências globais em prevenção do câncer baseada em evidências.
qualquer quantidade de álcool aumenta o risco de câncer
para prevenção, o melhor é não beber
há forte evidência para câncer colorretal, mama, fígado e trato aerodigestivo superior
🇪🇺 - American Institute for Cancer Research (IARC)
não existe dose segura de álcool em relação ao câncer
o risco aumenta de forma progressiva com o consumo
o câncer colorretal está entre os mais fortemente associados ao álcool
🇪🇺 European Code against Cancer (Código Europeu contra o Câncer)
O European Code against Cancer é um guia oficial de prevenção, desenvolvido com apoio da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC/OMS) e adotado por países europeus.
O Código afirma que:
o álcool é uma causa comprovada de câncer
o risco é dose-dependente
não existe um nível claramente seguro de consumo
limitar ou evitar álcool reduz o risco de vários tipos de câncer, incluindo o colorretal
🇪🇺 European Health Alliance on Alcohol (EHAA)
A European Health Alliance on Alcohol é uma coalizão europeia de organizações de saúde e câncer que alerta para o impacto do álcool na carga de câncer na Europa.
milhares de casos de câncer poderiam ser evitados com redução do consumo de álcool
o álcool está diretamente implicado em câncer colorretal, mama e fígado
políticas públicas e aconselhamento clínico devem refletir esse risco
🧠 Mensagem-chave baseada no consenso internacional
Existe um consenso claro entre sociedades oncológicas americanas e europeias:o álcool é carcinogênico, não existe dose segura e sua redução — idealmente abstinência — é uma estratégia fundamental de prevenção do câncer, especialmente do câncer colorretal.
Álcool e Câncer Colorretal
1. Por que o álcool é especialmente problemático no intestino?
O intestino grosso é o órgão onde o álcool exerce três impactos diretos:
a) Formação local de acetaldeído
As bactérias intestinais convertem etanol em acetaldeído, aumentando o dano na mucosa.
b) Aumento da permeabilidade intestinal
Facilita a passagem de toxinas, inflamação e estresse oxidativo — um terreno fértil para recidiva e novos tumores.
c) Alteração profunda da microbiota
O álcool reduz espécies protetoras (como Akkermansia) e aumenta bactérias produtoras de aldeídos, que promovem carcinogênese.
2. O que a evidência mostra para câncer colorretal?
• Aumento do risco de adenomas (pólipos) avançados
Meta-análises mostram que mesmo consumo moderado aumenta risco de pólipos de alto grau.
• Maior risco de câncer colorretal em quem consome álcool regularmente
• Para quem já teve câncer colorretal: risco de recidiva e de segundo câncer primário é maior com álcool
• Estudos acompanham sobreviventes por anos e mostram pior prognóstico em quem mantém ingestão alcoólica.
• Não existe dose segura após um câncer colorretal
O epitélio colônico, após cirurgia e/ou quimioterapia, torna-se biologicamente mais suscetível ao dano do acetaldeído.
3. “Mas e uma taça de vinho de vez em quando?”
A resposta prática é:
Segurança absoluta? Não existe.
Risco muito menor quando: consumo é raro (algumas vezes por ano), sem episódios de binge, associado a estilo de vida protetor.
Mas, se a pergunta é baseada em evidências oncológicas, a recomendação formal é clara:
👉 Após um câncer colorretal, a estratégia mais segura é não beber álcool.
Conclusão
A ciência é clara: álcool é carcinogênico, aumenta risco de vários tipos de câncer e tem impacto particularmente forte no intestino grosso.Para quem nunca teve câncer, a melhor prevenção é reduzir ao máximo.Para quem já teve, especialmente câncer colorretal, abstinência é a recomendação mais segura.

Sou Dra. Berenice Cunha Wilke, médica formada pela UNIFESP em 1981, com residência em Pediatria na UNICAMP. Obtive mestrado e doutorado em Nutrição Humana na Université de Nancy I, França, e sou especialista em Nutrologia pela Associação Médica Brasileira. Também tenho expertise em Medicina Tradicional Chinesa e uma certificação internacional em Endocannabinoid Medicine. Lecionei em universidades brasileiras e portuguesas, e atualmente atendo em meu consultório, oferecendo minha vasta experiência em medicina, nutrição e medicina tradicional chinesa aos pacientes.
Para saber mais:
Álcool e Câncer
LoConte NK, Brewster AM, Kaur JS, Merrill JK, Alberg AJ.Alcohol and cancer: a statement of the American Society of Clinical Oncology. J Clin Oncol. 2018;36(1):83–93.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29112463/
World Cancer Research Fund International.Alcohol and cancer. London: WCRF; 2018.Disponível em: https://www.wcrf.org/preventing-cancer/topics/alcohol-and-cancer/
American Institute for Cancer Research.Alcohol and cancer risk. Washington (DC): AICR; 2018.Disponível em: https://www.aicr.org/cancer-prevention/food-facts/alcohol/
International Agency for Research on Cancer (IARC).Alcohol drinking. In: IARC Monographs on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans. Lyon: IARC; 2012.Disponível em: https://monographs.iarc.who.int/wp-content/uploads/2018/06/mono100E-11.pdf
International Agency for Research on Cancer (IARC).European Code against Cancer, 4th edition: alcohol drinking and cancer. Lyon: IARC; 2014.Disponível em: https://www.iarc.who.int/reference/european-code-against-cancer-4th-edition-alcohol-drinking-and-cancer/
📌 Álcool e câncer colorretal
Bagnardi V, Rota M, Botteri E, et al.Alcohol consumption and site-specific cancer risk: a comprehensive dose–response meta-analysis. Br J Cancer. 2015;112(3):580–593.Disponível em: https://www.nature.com/articles/bjc2014579
Fedirko V, Tramacere I, Bagnardi V, et al.Alcohol drinking and colorectal cancer risk: an overall and dose–response meta-analysis of published studies. Ann Oncol. 2011;22(9):1958–1972.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21307158/
Cao Y, Willett WC, Rimm EB, Stampfer MJ, Giovannucci EL.Alcohol intake and colorectal cancer survival. J Clin Oncol. 2015;33(23):2739–2746.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25667285/
World Cancer Research Fund / American Institute for Cancer Research.Diet, nutrition, physical activity and colorectal cancer. Continuous Update Project Expert Report 2018.Disponível em: https://www.wcrf.org/research-policy/our-research/grants-database/colorectal-cancer/
🔬 Mecanismos biológicos
Seitz HK, Stickel F.Molecular mechanisms of alcohol-mediated carcinogenesis. Nat Rev Cancer. 2007;7(8):599–612.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17446858/
Brooks PJ, Zakhari S.Acetaldehyde and the genome: beyond nuclear DNA adducts. Chem Res Toxicol. 2014;27(12):1938–1948.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24456661/
Homann N, Tillonen J, Rintamäki H, et al.Alcohol and colorectal cancer: the role of acetaldehyde. Alcohol Res. 2014;35(1):21–28.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26259088/






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