O genoma humano, o microbioma e a nova visão sobre o que é ser humano
- Berenice Cunha Wilke
- 20 de nov
- 5 min de leitura
GENOMA, MICROBIOMA E A NOVA DEFINIÇÃO DE “SER HUMANO”
Quando o Projeto Genoma Humano começou, em 1990, a expectativa era que o sequenciamento do DNA humano explicaria praticamente tudo: por que adoecemos, como envelhecemos, o que determina nossa saúde, nossa vulnerabilidade e até aspectos comportamentais. O projeto terminou oficialmente em 2003 e nos trouxe uma informação que, à época, foi quase desconcertante:
um ser humano possui apenas cerca de 20 mil genes codificadores de proteínas.
Ou seja: nós temos menos genes codificadores do que um pé de arroz e praticamente o mesmo número de genes que um camundongo. Isso mostrou que a complexidade humana não está explicada apenas pela quantidade de genes próprios. Foi então que a ciência percebeu que faltava algo muito grande no quebra-cabeça. Esse “algo” foi revelado poucos anos depois.
Em 2007 começou o Projeto Microbioma Humano, que aplicou as tecnologias de sequenciamento de nova geração — desenvolvidas para o genoma humano — agora para analisar o DNA dos microrganismos que vivem em nós: vírus, bactérias, arqueias e fungos. Esse projeto mudou literalmente a visão da biologia humana.
Hoje, o que se sabe é que:
O corpo humano abriga dezenas de trilhões de microrganismos, cerca de 200g - As estimativas modernas variam entre 30 a 100 trilhões.
O número de células microbianas e humanas é da mesma ordem de grandeza (por volta de 1:1)
Esses micróbios acrescentam cerca de 4,4 milhões de genes aos nossos modestos 20 mil genes humanos. Isso significa que mais de 99% dos genes presentes no nosso corpo não são humanos — são microbianos.
Esse conjunto de genes microbianos é chamado de metagenoma
E este ponto é central — e continua atual (2024–2025):
Existem cerca de 150 a 200 vezes mais genes microbianos do que genes humanos. A microbiota intestinal codifica mais de 3 milhões de genes. Mais de 99% dos genes presentes no corpo, em contagem absoluta, são microbianos.
Portanto, o ser humano não é apenas um indivíduo. Somos um sistema composto.
Não somos “um corpo com micróbios”. Somos um holobionte — uma parceria evolutiva de células humanas + um ecossistema inteiro de microrganismos simbióticos.
E isso muda tudo. A pergunta deixou de ser apenas “quais genes o ser humano tem?". A pergunta moderna passou a ser:
Quais genes estamos expressando — humanos ou microbianos?
E, principalmente: Quais metabólitos microbianos estamos produzindo?
Porque são esses metabólitos (ácidos graxos de cadeia livre como butirato, neurotransmissores, vitaminas, imunomoduladores etc.) que alteram o funcionamento do corpo.
MICROBIOMA INTESTINAL — NOSSO MAIOR “ÓRGÃO OCULTO”
A maior parte desses microrganismos vive no intestino grosso. E essa comunidade recebe o nome de microbiota intestinal.
Ela participa de funções essenciais — e isso não é mais hipótese, é fisiologia estabelecida:
Fermenta fibras não digeríveis pela enzima humana
Produz vitaminas como K e algumas do complexo B
Modula o tônus imunológico (balança inflamação/anti-inflamação)
Protege contra patógenos competindo por nutrientes e espaço
Influencia a permeabilidade intestinal (barreira intestinal)
Produz neurotransmissores (serotonina, GABA, dopamina)
Envia sinais ao cérebro via nervo vago, citocinas e metabolitos
Por todos esses motivos, hoje considera-se o conjunto intestino + microbiota como um órgão funcional. Não é exagero: é uma classificação fisiológica moderna.
ASSOCIAÇÃO COM DOENÇAS — O EIXO MICROBIOMA / DOENÇA SISTÊMICA
As pesquisas de metagenômica e metabolômica vêm mostrando que alterações na composição da microbiota estão associadas a múltiplas condições crônicas.
Exemplos com forte base de evidência:
Eixo de doença | Como o microbioma participa |
Obesidade | modulação de absorção de energia, SCFAs, inflamação metabólica |
DM2 | resistência à insulina, LPS, inflamação crônica |
Doenças autoimunes | permeabilidade intestinal, mimetismo molecular |
Doenças cardiovasculares | metabólitos como TMAO |
Câncer | modulação inflamatória, interferência em drogas imunoterápicas |
Autismo / TDAH | eixo intestino–cérebro, neurotransmissores, inflamação neuroglial |
Parkinson | α-sinucleína e eixo intestino–cérebro bidirecional |
Alzheimer | neuroinflamação sistêmica, SCFAs, integridade de barreiras |
Não significa que o microbioma “cause tudo”. Significa que ele participa das redes biológicas que favorecem saúde ou doença.
A doença é multifatorial. O microbioma é uma das engrenagens que pode empurrar o sistema na direção de saúde — ou de desregulação.
A PERDA DE DIVERSIDADE — O PREÇO DA VIDA MODERNA
Comparando a microbiota de populações ocidentais modernas com povos tradicionais (Hadza na Tanzânia, Yanomami na Amazônia, e outras populações não industrializadas) observamos que:
Perdemos grandes porções da diversidade microbiana ancestral.
Isso tem sido associado a:
Dieta pobre em fibras reais
Uso recorrente de antibiótico
Dieta ultraprocessada
Sedentarismo
Parto cesárea
Redução do contato ambiental
E essa perda de diversidade é considerada hoje um fator de risco biológico. Não é uma metáfora: é uma característica mensurável de vulnerabilidade.
O QUE ISSO MUDA NO DIA A DIA?
Hipócrates dizia:“Você é o que você come.” Com o conhecimento atual podemos dizer:
Você é o que o seu microbioma consegue transformar daquilo que você come.
E para isso precisamos alimentar o microbioma. O microbioma é um órgão que precisa ser alimentado:
E o que alimenta o microbioma?
Fibras solúveis (inulina, FOS, pectina, beta-glucanas)
Fibras insolúveis (celulose, lignina)
Diversidade vegetal
Alimentos fermentados (kéfir, kombucha, vegetais fermentados, iogurte natural)
Quanto mais diversidade de plantas → maior diversidade microbiana → maior resiliência metabólica.
E quanto menos ultraprocessados → menos dano à diversidade bacteriana.
SÍNTESE FINAL
Temos poucos genes humanos
Os micróbios acrescentam milhões de genes
99% dos genes presentes no corpo, em contagem absoluta, são microbianos
Esses genes produzem metabólitos que alteram metabolismo, imunidade e sinalização cerebral
O microbioma intestinal funciona como um órgão
A perda de diversidade microbiana é característica marcante da vida moderna e se relaciona ao aumento de doenças crônicas.
E, portanto, a medicina do século XXI está começando a mudar seu paradigma de foco exclusivo no organismo humano isolado para uma visão integrada:
Não somos apenas humanos. Em número de células, somos aproximadamente metade células humanas e metade células microbianas — Somos um consórcio humano-microbiano.
Somos um holobionte. E cuidar da saúde, hoje, significa também cuidar da ecologia interna que vive dentro de nós.

Sou Dra. Berenice Cunha Wilke, médica formada pela UNIFESP em 1981, com residência em Pediatria na UNICAMP. Obtive mestrado e doutorado em Nutrição Humana na Université de Nancy I, França, e sou especialista em Nutrologia pela Associação Médica Brasileira. Também tenho expertise em Medicina Tradicional Chinesa e uma Certificação Internacional em Endocannabinoid Medicine. Lecionei em universidades brasileiras e portuguesas, e atualmente atendo em meu consultório, oferecendo minha vasta experiência em medicina, nutrição e medicina tradicional chinesa aos pacientes.
Para saber mais:
Ribeiro G, Ferri A, Clarke G, Cryan JF.
Curr Opin Clin Nutr Metab Care. 2022 Nov 1;25(6):443-450.
Brain Res Bull. 2022 May;182:44-56.
National Institutes of Health (NIH)
Xiaoming Bian 1, Liang Chi 2 et all.
Front Physiol. 2017 Jul 24;8:487.
National Institutes of Health (NIH)






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