top of page

ENTREVISTA: AUTISMO E BIOENERGIA

  • Foto do escritor: Berenice Cunha Wilke
    Berenice Cunha Wilke
  • 10 de jul. de 2024
  • 18 min de leitura

Atualizado: 22 de nov.

Em comemoração aos 7 anos do IAP (Instituto do Autismo de Piracicaba) fui convidada pela Eliana C. Saliba para participar de uma série de entrevistas comemorativas.


Eliana Castro Saliba

  • Diretora e fundadora do IAP - Instituto Autismo Piracicaba; Especialista em Neurociência Aplicada à Educação pela Faculdade de Medicina da Santa Casa de SP; Terapeuta DIR pela Profectum Fundation - USA; Coaching de Pais no Modelo DIR pela Profectum Fundation - USA; Psicopedagoga; PEERS for Adolescentes pela UCLA pela Clinic Semel Institute for Neuroscience & Human Behavior - USA; Mãe de um jovem autista.


Eliana:

Nós estamos assistindo a um grande aumento no número de casos de autismo e de várias outras doenças como TDHA, ansiedade, depressão. O que está acontecendo? Esse aumento é real?

 

Dra. Berenice:

O aumento é real, pelo menos em termos de diagnósticos.


O CDC (Centers for Disease Control and Prevention), nos Estados Unidos, divulga a cada dois anos a prevalência de autismo em crianças de 8 anos. Durante muitos anos o número mais citado foi 1 em 150 crianças, no início dos anos 2000. Hoje estamos longe disso.


Com os dados de 2020, publicados em 2023, a prevalência chegou a 1 em 36 crianças de 8 anos. Com a atualização mais recente, usando dados de 2022 e publicada em 2025, esse número subiu para 1 em 31 crianças de 8 anos com TEA. Em pouco mais de 20 anos, isso representa quase 5 vezes mais crianças diagnosticadas com autismo do que no primeiro relatório do CDC. Isso representa um aumento de cerca de 380% na prevalência estimada de autismo.”


E não é só o autismo. Vemos também aumento de diagnósticos de TDAH, ansiedade, depressão, transtorno bipolar e de algumas doenças neurodegenerativas como demência e Parkinson. Parte disso se deve a melhor reconhecimento, mais acesso a diagnóstico e menos estigma. Mas o ritmo e o padrão de crescimento sugerem que fatores ambientais – e não só a genética – também estão mudando e influenciando esse cenário.



 

Eliana:

Se esse aumento é real o que está acontecendo? São fatores genético e ambientais?


Dra. Berenice:

O autismo é altamente influenciado por fatores genéticos, mas a genética sozinha não explica um aumento tão grande em tão pouco tempo. Doenças puramente genéticas, em geral, não mudam de prevalência dessa forma ao longo de duas ou três décadas.


O que sabemos hoje é que o autismo resulta de uma combinação de:

  • uma base genética (vários genes que aumentam a vulnerabilidade)

  • fatores ambientais que atuam sobre essa vulnerabilidade, especialmente na gestação e nos primeiros anos de vida.


Por isso dizemos que cada caso de autismo é único dentro do espectro: diferentes combinações de genes e de exposições ambientais podem levar a alterações metabólicas cerebrais diferentes, resultando em perfis clínicos muito variados.

 

Eliana:

Como os genes influenciam no autismo e qual o papel dos exames genéticos? É importante fazer os exames genéticos?

 

Dra. Berenice:

Hoje sabemos que existem centenas de genes associados ao autismo. Alguns são genes em que uma mutação forte por si só pode causar um quadro sindrômico com autismo. Outros são variantes que aumentam o risco, mas não determinam sozinhas o diagnóstico.


Bancos de dados internacionais como o SFARI Gene já listam mais de 1.000 genes associados a risco aumentado de TEA, sendo algumas centenas com evidência mais consistente.


Na prática, quando fazemos uma investigação genética moderna – por exemplo:

  • pesquisa de X-Frágil,

  • microarray cromossômico (Array CGH/CMA) e

  • exoma (de preferência em trio: criança + pais),


conseguimos identificar uma causa genética clara em cerca de 20–40% dos casos, especialmente quando há autismo associado a deficiência intelectual, epilepsia ou outras alterações neurológicas. Em quadros sem deficiência intelectual, o rendimento costuma ser um pouco mais baixo, mas ainda assim relevante.


Ter o diagnóstico genético é importante por vários motivos:

  • Permite acompanhar pesquisas específicas daquele gene.

  • Ajuda a entender quais vias metabólicas cerebrais podem estar comprometidas.

  • Facilita o acesso a ensaios clínicos futuros e a redes de famílias com a mesma condição.

  • Orienta o aconselhamento genético da família sobre risco de recorrência.


Hoje também temos pesquisas com “minicérebros” (organoides cerebrais), que são modelos em laboratório feitos a partir de células do próprio paciente. Eles permitem testar medicamentos já existentes (reposicionamento de fármacos) e novas moléculas diretamente em tecido neuronal com aquela mutação. Isso abre um caminho muito promissor para tratamentos personalizados no futuro.


Além disso, os exames genéticos se tornaram ainda mais relevantes porque hoje vivemos uma revolução nas terapias gênicas. A tecnologia CRISPR, que permite “editar” genes de forma muito precisa, já está sendo usada em ensaios clínicos para corrigir mutações responsáveis por doenças graves. Embora ainda não exista edição gênica para autismo (e talvez nunca exista um único alvo, porque o TEA é muito heterogêneo), CRISPR já está sendo testado em vários genes associados a doenças neurológicas e algumas técnicas de edição mais suaves (como epigenética dirigida) começam a aparecer. Ter o diagnóstico genético correto é o que abre portas para que, no futuro, cada família possa acompanhar se existe pesquisa em andamento para aquele gene específico.

 

Eliana:

E os casos que não são devidos a mutações dos genes? Que não podem ser diagnosticados com os exames genéticos? Qual a causa do autismo nesse caso?

 

Dra. Berenice:

Mesmo com toda a tecnologia atual, a maioria dos casos de autismo ainda não tem uma causa genética única identificada. Isso não significa que não haja componente genético, mas que:

  • provavelmente existem vários genes, cada um contribuindo um pouco,

  • somados a fatores ambientais que atuam em momentos críticos do desenvolvimento.


Estima-se que algo em torno de 60–80% dos casos não tenha, por enquanto, uma mutação “forte” claramente identificável que explique tudo sozinha.

Nesses casos, falamos em uma interação complexa entre:

  • predisposição genética (vários genes de risco),

  • exposições ambientais (nutrição, inflamação, tóxicos, estresse, etc.),

  • e mecanismos epigenéticos, que regulam quando e como os genes são “ligados” ou “desligados”.

 

Eliana:

Como a epigenética influencia no autismo?

 

 Dra. Berenice:

A epigenética estuda como o ambiente conversa com os genes. Ou seja, o que faz um gene ser ativado ou silenciado sem mudar a sequência do DNA.


Todas as células do nosso corpo têm o mesmo DNA, mas uma célula do fígado se comporta diferente de uma célula do cérebro porque o padrão epigenético é diferente em cada tecido.


Um dos mecanismos epigenéticos mais conhecidos é a metilação do DNA: pequenas “marcas químicas” (grupos metil) que se ligam em regiões reguladoras do DNA e podem ativar ou inibir genes. Isso permite regular a forma como o DNA é usado pela célula sem alterar a sequência genética.


Fatores epigenéticos podem interferir em:

  • genes que regulam a função mitocondrial (produção de energia),

  • genes envolvidos em inflamação,

  • formação de sinapses e desenvolvimento de circuitos neurais.


Durante a gestação e nos primeiros anos de vida, o cérebro está em intensa construção. O ambiente intrauterino (nutrição, hormônios, inflamação, exposição a tóxicos) exerce enorme influência sobre essas marcas epigenéticas, podendo predispor a alterações metabólicas e neurológicas que vão se manifestar ao longo da vida.

Eliana:

Então esses fatores epigenéticos atuariam durante a gestação e atuariam nos genes para causar o autismo?


Dra. Berenice:

Sim. Gostamos de falar hoje em “primeiros 1000 dias” – aproximadamente do início da gestação até por volta dos 2 anos de idade. Esse é o período mais crítico para o desenvolvimento neuropsicomotor e metabólico da criança.


Dentro desses 1000 dias:

  • a gestação é especialmente delicada, porque é quando ocorre a formação inicial do cérebro;

  • os primeiros anos são fundamentais para a organização das redes neurais, poda sináptica e desenvolvimento da comunicação, linguagem e regulação emocional.


Quanto mais cedo um fator de risco atua – por exemplo, inflamação intensa, desnutrição importante, exposição a determinados tóxicos, desequilíbrios importantes de glicose ou de hormônios – maior a chance de impactar o desenvolvimento cerebral.


Por isso insistimos tanto em:

  • reduzir exposições tóxicas desnecessárias,

  • cuidar do estado nutricional e metabólico da mãe,

  • favorecer um ambiente intrauterino o mais saudável possível.

 

Eliana:

É muito interessante porque sabemos que fatores muito variados como metais, agrotóxicos e alimentos podem causar autismo. Mas, é difícil imaginar aonde fatores tão diferentes agem para causar o autismo. Como isso acontece?

 

Dra. Berenice:

Essa é uma das grandes perguntas da pesquisa moderna: existe um “ponto de convergência” onde fatores tão distintos se encontram?


Hoje, uma das hipóteses mais fortes é que muitos desses fatores – metais tóxicos, poluição, agrotóxicos, inflamação crônica, distúrbios metabólicos, desequilíbrios da microbiota – convergem para alterar a bioenergia, ou seja, a forma como as células produzem e utilizam energia.


Quando isso acontece no cérebro em desenvolvimento, especialmente nos primeiros 1000 dias, essa alteração da produção de energia e do equilíbrio oxidativo/inflamatório pode:

  • interferir na formação de novas células nervosas,

  • atrapalhar o crescimento e a ramificação dos neurônios,

  • prejudicar a formação e a estabilidade das sinapses,

  • desregular neurotransmissores como glutamato e GABA.

Esse conjunto de alterações metabólicas e estruturais pode contribuir, em crianças com predisposição genética, para o surgimento de quadros de TEA.

 

Eliana:

O que é a bioenergia? Quem produz a energia necessária para o desenvolvimento da criança no útero e para a vida de todos nós?


Dra. Berenice:

Bioenergia é a energia produzida pelo nosso organismo para que todos os processos metabólicos ocorram: pensar, respirar, contrair músculos, produzir hormônios, manter a imunidade funcionando.


Mais de 99% da energia usada pelas nossas células é produzida em estruturas chamadas mitocôndrias. Por isso não dá para falar de bioenergética sem falar de mitocôndrias.


Tanto a falta de energia quanto a produção excessiva e desorganizada de energia estão associadas a distúrbios metabólicos importantes, e o cérebro é um dos órgãos mais sensíveis a essas variações.


Eliana:

Há muitos anos se ouve falar nos distúrbios das mitocôndrias como causa do autismo. Mas, o que é mitocôndria e como elas podem estar associadas ao autismo?


Dra. Berenice:

As mitocôndrias são frequentemente chamadas de “usinas de energia” das células. É nelas que a maior parte do ATP – a “moeda energética” do organismo – é produzida.


Temos algo em torno de dezenas de trilhões de mitocôndrias no corpo. Algumas células, principalmente neurônios, podem ter centenas de mitocôndrias cada.

Algumas curiosidades importantes:

  • As mitocôndrias produzem praticamente toda a energia que usamos.

  • Estima-se que as mitocôndrias de um adulto produzam, ao longo do dia, energia equivalente a várias vezes o próprio peso corporal. Nosso organismo não armazena muita energia pronta – ela precisa ser produzida o tempo todo.

  • “As mitocôndrias de um adulto de 70 kg produzem, continuamente, energia equivalente a cerca de 2 a 3 pilhas AA a cada 5 minutos — aproximadamente 1,7 a 2,6 kWh por dia, dependendo do metabolismo.”

  • O cérebro, embora represente apenas cerca de 2% do peso corporal, consome cerca de 20% da energia produzida em repouso. No cérebro em desenvolvimento esse custo é ainda maior.


Além de energia, as mitocôndrias:

  • regulam o metabolismo de gorduras e açúcares,

  • participam da produção de hormônios e neurotransmissores,

  • modulam processos inflamatórios e radicais livres,

  • regulam o metabolismo do cálcio, essencial para a função cerebral.


Por tudo isso, não é surpreendente que alterações crônicas da função mitocondrial possam impactar fortemente o neurodesenvolvimento e estar associadas ao autismo e a outros transtornos neuropsiquiátricos.


Eliana:

Como as mitocôndrias atuam no autismo?  Existe diferença entre a doença mitocondrial e as disfunções da mitocôndria?


Dra. Berenice:

Sim, essa distinção é importante.


A Doença mitocondrial clássica é uma condição rara, causada por mutações no DNA mitocondrial ou nuclear que afetam diretamente a maquinaria da mitocôndria. Acomete algo em torno de 1 em cada 4.000–5.000 pessoas.


Já as chamadas disfunções mitocondriais são mais amplas: situações em que a mitocôndria não funciona de forma ideal – pode produzir menos energia, pode produzir energia de forma desorganizada, ou gerar excesso de radicais livres. Isso pode ocorrer por uma combinação de genética, epigenética e fatores ambientais.


No autismo, os estudos sugerem que:

  • uma pequena porcentagem das crianças (cerca de 5%) preenche critérios de doença mitocondrial clássica;

  • porém 30–50% podem apresentar algum biomarcador de disfunção mitocondrial, mesmo sem uma doença mitocondrial formalmente diagnosticada.


Ou seja: na maioria das crianças com TEA não temos uma “doença mitocondrial pura”, mas sim alterações da função mitocondrial que podem contribuir para o quadro clínico e para sua gravidade.

 

Eliana:

O que a disfunção mitocondrial causa qual a importância dessas disfunções no TEA? A disfunção ocorre tanto quando a mitocôndria produz menos energia ou ocorre também quando a mitocôndria produz mais energia?


Dra. Berenice:

Hoje sabemos que a disfunção mitocondrial não é rara no autismo. Estudos mostram que cerca de 30% das crianças com TEA apresentam alterações laboratoriais de energia, e análises mais detalhadas indicam que até 80% podem ter algum grau de alteração na função da cadeia respiratória das mitocôndrias.


Essa disfunção pode aparecer de duas formas:

  • Produção insuficiente de energia, que prejudica a formação das sinapses, o equilíbrio entre glutamato e GABA e o crescimento dos neurônios. Isso favorece atrasos motores, de fala e maior vulnerabilidade à regressão após infecções.

  • Produção excessiva e desorganizada de energia, que aumenta muito os radicais livres e a inflamação. Esse padrão está associado a hiperexcitabilidade cerebral, comportamentos estereotipados mais intensos e instabilidade no desenvolvimento.


Ou seja, tanto a “falta” quanto o “excesso” de atividade mitocondrial podem comprometer o neurodesenvolvimento. O cérebro infantil precisa de um equilíbrio muito preciso na produção de energia, e quando esse equilíbrio se rompe — por genética, inflamação ou fatores ambientais — podem surgir alterações ligadas ao espectro autista.


Eliana:

Porque o aumento de energia seria nocivo?


Dra. Berenice:

Porque a mitocôndria não produz só energia – ela produz energia e radicais livres.

Na fosforilação oxidativa, uma pequena parte dos elétrons “escapa” e forma espécies reativas de oxigênio (radicais livres). Em quantidades moderadas, isso é normal e até necessário para a sinalização celular.


Mas quando:

  • a mitocôndria está hiperativa,

  • ou os sistemas antioxidantes estão sobrecarregados,

esses radicais livres se acumulam e começam a danificar lipídios, proteínas e DNA, inclusive o DNA mitocondrial, que é mais vulnerável do que o DNA nuclear.


Estudos mostram que o DNA mitocondrial pode sofrer um nível de estresse oxidativo muito maior e acumular mutações com mais facilidade. Isso:

  • piora ainda mais a função da mitocôndria,

  • aumenta a inflamação,

  • e afeta diretamente o funcionamento de neurônios e sinapses.


Há evidências de que esse padrão de produção exagerada de radicais livres e disfunção mitocondrial se associa a sintomas como:

  • maior gravidade de comportamentos estereotipados,

  • interesses restritos,

  • episódios de regressão no neurodesenvolvimento após infecções ou inflamações mais intensas.


         O aumento da produção de energia pela mitocôndria está associado ao aumento da produção de radicais livres.


Durante a produção de energia, na fosforilação oxidativa, temos a formação de radicais livres que são importantes no processo metabólico. Quando a mitocôndria produz um excesso de energia, ela produz também um excesso de radicais livres que ultrapassam os mecanismos antioxidantes das células. Esse é um dos aspectos mais interessantes da disfunção mitocondrial. Esse aumento da produção de radicais livres causa aumento da oxidação e da inflamação sistêmica que por sua vez agrava a disfunção mitocondrial.

O terrível trio de estresse oxidativo, disfunção mitocondrial e inflamação reforçam-se mutuamente e negativamente para resultar em uma disfunção fisiológica crônica característica do TEA.


Como esse vazamento está acontecendo fisicamente bem próximo ao DNA mitocondrial, ele experimenta um nível 10 vezes maior de estresse oxidativo do que o DNA nuclear, resultando em uma taxa de mutação 17 vezes maior.  Proteger as mitocôndrias e otimizar sua função é uma estratégia fundamental para uma vida longa e saudável.

 

Esse excesso de produção de energia pela mitocôndria está relacionado aos comportamentos estereotipados e aos interesses restritos e a regressão do neurodesenvolvimento.


Eliana:

         E no caso da mitocôndria estar produzindo menos energia?


Dra. Berenice:

        Nesse caso o raciocínio é mais intuitivo: falta “combustível” para o cérebro em desenvolvimento.


As mitocôndrias participam de praticamente todos os estágios da neurogênese:

  • proliferação de células progenitoras,

  • migração de neurônios,

  • crescimento de axônios e dendritos,

  • formação e remodelamento de sinapses.


Também são cruciais para:

  • a transmissão sináptica,

  • o ciclo glutamato–GABA,

  • a homeostase de neurotransmissores,

  • a regulação fina do cálcio dentro dos neurônios.


Quando a respiração mitocondrial está cronicamente reduzida:

  • neurônios podem ficar menores, com menos ramificações,

  • redes neurais podem se organizar de forma diferente,

  • mecanismos de plasticidade e aprendizado podem ser prejudicados.


Isso contribui para atrasos de linguagem, dificuldades de comunicação social e alterações sensoriais que vemos em muitos quadros de TEA.


Eliana:

Tanto a diminuição quanto o aumento da produção de energia podem causar autismo?


Dra. Berenice:

Os estudos apontam que o equilíbrio da taxa metabólica mitocondrial é crítico para o desenvolvimento estrutural e funcional do cérebro.

Tanto um metabolismo mitocondrial abaixo do ideal, quanto um metabolismo excessivamente elevado e desorganizado podem levar a diferentes anormalidades de desenvolvimento:

  • baixa respiração mitocondrial → neurônios mais curtos, menos complexos, com menos ramificações;

  • metabolismo muito elevado → neurônios excessivamente ramificados, hiperexcitabilidade glutamatérgica, redes mais instáveis.


Distúrbios na homeostase de neurotransmissores como glutamato, GABA, dopamina e serotonina durante o desenvolvimento pré-natal e início da infância podem resultar em redes desbalanceadas, com prejuízo da neuroplasticidade e da integração de informações – algo muito típico dos quadros do espectro autista.


Eliana:

O que a disfunção mitocondrial e o TEA  tem clinicamente em comum?


Dra. Berenice:

Essa é uma observação clínica muito interessante: quando olhamos para pessoas com TEA que têm disfunção mitocondrial bem documentada, aparecem muitos pontos em comum:

  • Regressão atípica do neurodesenvolvimento, especialmente desencadeada após infecções, vacinas atrasadas + infecções, cirurgias ou outras situações inflamatórias importantes (o gatilho costuma ser a inflamação, não a vacina em si).

  • Atraso global do desenvolvimento.

  • Alterações de fala e linguagem.

  • Sintomas gastrointestinais – que já são frequentes no TEA, mas aparecem ainda mais quando há disfunção mitocondrial associada.

    • Estudos com biópsias intestinais mostram alteração de função mitocondrial principalmente no ceco e um forte desequilíbrio da microbiota.

    • Por sua vez, a microbiota alterada também pode piorar a função mitocondrial, criando um ciclo vicioso.

  • Crises convulsivas ou epilepsia.

  • Atrasos motores, fraqueza, fadiga, intolerância ao esforço.

  • Letargia ou flutuações importantes de energia ao longo do dia.

  • Alterações endócrinas (por exemplo, tireoide, puberdade, hormônios do estresse).

  • Alterações imunológicas – o sistema imune depende intensamente da função mitocondrial, e muitos estudos mostram disfunção da imunidade inata em indivíduos com TEA.

  • Maior recorrência de quadros neuropsiquiátricos na família.

  • Em alguns casos, neuropatia periférica.


Esses paralelos reforçam a ideia de que, em uma parte importante dos casos, o autismo não é só um transtorno “do cérebro”, mas um quadro sistêmico em que metabolismo, imunidade, mitocôndrias e microbiota intestinal estão profundamente interligados.


Eliana:

O que causa a disfunção mitocondrial? São os fatores genéticos que causam disfunção mitocondiral?


Dra. Berenice:

Os fatores genéticos e os ambientais são as grandes causas de disfunção mitocondrial. Vamos começar com os fatores genéticos.


As mitocôndrias têm uma história única: elas possuem DNA próprio (DNA mitocondrial), mas a maior parte das proteínas mitocondriais é codificada pelo DNA nuclear.

  • Estimamos que existam cerca de 1.000–1.500 genes nucleares relacionados à biogênese e função mitocondrial.

  • O DNA mitocondrial em si contém 37 genes, localizados dentro da própria mitocôndria.


O DNA nuclear fica protegido no núcleo da célula. Já o DNA mitocondrial fica bem mais exposto, próximo à cadeia de transporte de elétrons, onde há produção de radicais livres. Isso o torna mais vulnerável a danos por fatores ambientais.


Uma característica importante é que, em uma mesma pessoa, podemos ter uma mistura de:

  • mitocôndrias com DNA “normal”,

  • mitocôndrias com DNA mitocondrial mutado.


Esse mosaico, chamado de heteroplasmia, pode variar de tecido para tecido e ao longo da vida.


Estudos mostram que crianças com TEA têm maior probabilidade de apresentar:

  • cópia extra (super-replicação) de DNA mitocondrial,

  • deleções de segmentos desse DNA,

em comparação com crianças neurotípicas. Isso reflete justamente um desequilíbrio entre produção de radicais livres e defesas antioxidantes, levando a mais danos e tentativas de compensação.


Eliana:

E qual a importância dos fatores ambientais na disfunção mitocondrial?


Dra. Berenice:

Os fatores ambientais que aumentam o risco de TEA em geral são os mesmos que podem prejudicar a função mitocondrial. É como se eles atacassem a “usina de energia” em vários pontos:

  • Obesidade materna e síndrome metabólica

    • Diversos estudos associam obesidade antes e durante a gestação com maior risco de autismo e TDAH. Algumas coortes sugerem risco pelo menos duas vezes maior de TEA nesses contextos, especialmente quando há obesidade + diabetes.

  • Níveis elevados de insulina e glicose

    • Diabetes, pré-diabetes e resistência à insulina prejudicam a função mitocondrial, diminuem a biogênese de novas mitocôndrias e aumentam inflamação e estresse oxidativo.

  • Desnutrição materna e desequilíbrios nutricionais

    • Tanto falta de nutrientes essenciais (como ferro, iodo, colina, vitamina D, folato) quanto dietas muito ultraprocessadas interferem com a formação de membranas celulares, mielina e enzimas mitocondriais.

  • Alterações da microbiota materna e da microbiota do bebê

    • A microbiota produz metabólitos que dialogam com mitocôndrias (ácidos graxos de cadeia curta, por exemplo) e modulam inflamação e energia.

  • Exposição a tóxicos ambientais

    • Poluição do ar, alguns agrotóxicos, pesticidas (como organofosforados), metais pesados (arsênico, chumbo, mercúrio), ftalatos, bisfenóis, retardantes de chama (PBDEs) – muitos desses compostos têm efeito direto sobre mitocôndrias em modelos experimentais.

    • dos Pesticidas o glifosato merece uma mensão porque é muito comum em diversos alimentos. O glifosato foi encontrado em excesso no biscoito de maisena pelo IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) em maio 2024

    • Os retardantes de chama - Éter difenílico polibromado - PBDEs - representam um grupo importante de produtos químicos de alto volume amplamente utilizados em plásticos, têxteis, móveis e dispositivos eletrônicos, são utilizados como retardante de chamas e sua presença no meio ambiente vem aumentando consideravelmente nos últimos anos. Estudos em populações dos EUA demonstraram a presença de PBDEs no leite materno humano, tecido adiposo e sangue.

  • Fumaça de cigarro, álcool e drogas

    • Aumentam estresse oxidativo, prejudicam a função mitocondrial e a vascularização da placenta.

  • Infecções, inflamação crônica e estresse intenso

    • O sistema imune e o eixo do estresse consomem muita energia e podem desviar recursos da “construção” do cérebro.


E quanto a medicamentos?Alguns fármacos têm efeitos mitocondriais conhecidos em modelos experimentais (por exemplo, valproato, algumas estatinas, certos antibióticos em uso prolongado). Outros, como paracetamol, AINEs e sedativos, vêm sendo estudados em estudos observacionais, mas ainda não há consenso de causalidade com TEA.


O ponto mais importante é: não se trata de alarmar nem de culpar. Muitos desses medicamentos são necessários e salvam vidas. A mensagem prática é:

  • evitar uso desnecessário e prolongado,

  • sempre pesar riscos e benefícios com acompanhamento médico,

  • e, quando possível, reduzir a carga global de fatores que sabemos que sobrecarregam as mitocôndrias.


Eliana:

Quais os fatores de risco para o desenvolvimento do autismo são  muitos, isso já é bem conhecido. Mas, esses fatores de risco são os mesmos que causam disfunção mitocondrial? Aonde a disfunção e o autismo se encontram?


Dra. Berenice:

À primeira vista, parece que não têm nada a ver. Mas quando olhamos “por dentro” da célula, ambos convergem para os mesmos alvos:

  • aumentam estresse oxidativo,

  • pioram inflamação crônica,

  • atrapalham a função mitocondrial,

  • desregulam a sinalização hormonal e imunológica.


As mitocôndrias são extremamente sensíveis ao ambiente. Quando a produção de energia é prejudicada ou se torna excessivamente “suja” – com muito radical livre e muita inflamação – o cérebro em desenvolvimento é um dos primeiros a sofrer.


É por isso que, em pesquisa, usamos às vezes exemplos extremos, como o cianeto, que é um veneno mitocondrial clássico: ele bloqueia a cadeia de transporte de elétrons e a morte pode ser rápida. Obviamente, o que vemos no dia a dia não é isso, mas sim uma exposição crônica a múltiplos fatores menores que, somados, podem desgastar as mitocôndrias ao longo do tempo.


São muitos fatores, os pesquisadores vêm procurando uma via comum de ação entre esses fatores associados ao autismo e a disfunção mitocondrial. O fato interessante é que os fatores associados ao autismo são os mesmos associados a disfunção mitocondrial.

As mitocôndrias são os componentes celulares responsáveis pela produção de energia no nosso organismo. Se essa produção for comprometida, como um cérebro pode se desenvolver adequadamente?


Se houver um aumento nos processos de oxidação e inflamação como um cérebro pode se desenvolver e exercer suas funções adequadamente?

 

Eliana

Os fatores associados ao autismo e a disfunção mitocondrial são múltiplos. O que tem em comum os agrotóxicos e a obesidade para serem causas de autismo, por exemplo?

 
Dra. Berenice

À primeira vista, parece que não têm nada a ver. Mas quando olhamos “por dentro” da célula, ambos convergem para os mesmos alvos:

  • aumentam estresse oxidativo,

  • pioram inflamação crônica,

  • atrapalham a função mitocondrial,

  • desregulam a sinalização hormonal e imunológica.


As mitocôndrias são extremamente sensíveis ao ambiente. Quando a produção de energia é prejudicada ou se torna excessivamente “suja” – com muito radical livre e muita inflamação – o cérebro em desenvolvimento é um dos primeiros a sofrer.


Eliana:

Como prevenir ou tratar a disfunção mitocondrial?


Dra. Berenice:

Do ponto de vista de saúde pública e de prevenção, o ideal é pensar em três níveis:


1. Antes da gestação (preparo)

  • Avaliar e, se possível, tratar obesidade, resistência à insulina e diabetes.

  • Melhorar a qualidade da alimentação, reduzindo ultraprocessados e aumentando alimentos integrais, vegetais, fibras e gorduras saudáveis.

  • Corrigir deficiências nutricionais mais comuns (ferro, vitamina D, B12, folato, iodo, etc.).

  • Desencorajar tabagismo, uso de álcool e drogas.


2. Durante a gestação

  • Acompanhar bem peso, glicose, pressão arterial.

  • Evitar exposição desnecessária a agrotóxicos, solventes, fumaça e outros tóxicos conhecidos.

  • Usar medicamentos com critério, sempre com orientação médica.

  • Cuidar do sono, do manejo do estresse e da saúde mental materna.

  • Priorizar uma alimentação rica em alimentos in natura ou minimamente processados, com boa oferta de fibras e variedade de vegetais.


3. Após o nascimento e primeiros anos

  • Estimular o parto vaginal, quando possível e seguro.

  • Incentivar amamentação prolongada, sempre que viável.

  • Introdução alimentar com foco em comida de verdade, rica em fibras, cores e texturas, limitando ultraprocessados, açúcares e adoçantes artificiais.

  • Cuidar da microbiota intestinal da criança (alimentação, evitar antibióticos desnecessários).

  • Garantir sono adequado, momentos de brincadeira ao ar livre e atividade física.

  • Monitorar sinais de atraso do desenvolvimento e procurar ajuda precoce – diagnóstico e intervenção precoce fazem muita diferença.


Em casos em que já existe suspeita ou confirmação de disfunção mitocondrial, pode-se considerar, sempre com acompanhamento especializado:

  • ajustes alimentares específicos,

  • suporte com nutrientes que participam da função mitocondrial (como certas vitaminas e cofatores),

  • tratamento de inflamação crônica, disbiose intestinal e distúrbios metabólicos associados.


A mensagem final é: não existe um único culpado nem uma solução mágica, mas um conjunto de pequenas decisões – individuais, familiares e coletivas – que podem criar um ambiente mais favorável à saúde mitocondrial e ao neurodesenvolvimento saudável.


ree

Figura 1 - O efeito do metabolismo mitocondrial do SNC é diretamente proporcional à complexidade da tarefa comportamental e cognitiva e à demanda de atenção. Um modelo funcional do impacto potencial do metabolismo mitocondrial do SNC em cada um dos componentes de uma dada resposta comportamental. Representadas as funções gerais do SNC no triângulo (centro) e testes específicos para medi-las à direita. Quanto mais complexa e mais exigente a tarefa, mais o metabolismo mitocondrial do cérebro desempenha um papel maior (esquerda). Portanto, as tarefas listadas no topo são mais sensíveis a alterações metabólicas menores.




Sou Dra. Berenice Cunha Wilke, médica formada pela UNIFESP em 1981, com residência em Pediatria na UNICAMP. Obtive mestrado e doutorado em Nutrição Humana na Université de Nancy I, França, e sou especialista em Nutrologia pela Associação Médica Brasileira. Também tenho expertise em Medicina Tradicional Chinesa e uma Certificação Internacional em Endocannabinoid Medicine. Lecionei em universidades brasileiras e portuguesas, e atualmente atendo em meu consultório, oferecendo minha vasta experiência em medicina, nutrição e medicina tradicional chinesa aos pacientes.



Rose S, Niyazov DM, Rossignol DA, Goldenthal M, Kahler SG, Frye RE.

Mol Diagn Ther. 2018 Oct;22(5):571-593.


Frye RE, Rincon N, McCarty PJ, Brister D, Scheck AC, Rossignol DA.

Neurobiol Dis. 2024 julho;197:106520.


Por Azra Jaferi17 de junho de 2022.


Joseph Pizzorno, ND, Editor in Chief*

Integr Med (Encinitas). 2022 May; 21(2): 8–13.


ilIlaria M. Morella, Riccardo Brambilla, Lorenzo Morè



Khan FY, Kabiraj G, Ahmed MA, Adam M, Mannuru SP, Ramesh V, Shahzad A, Chaduvula P, Khan S.Cureus. 2022 Jul 18;14(7):e26995.



Comentários


bottom of page